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Tiago Moreira

Prólogo: O Sombra Mascarado


 
Prólogo: O Sombra Mascarado

A trilha dera uma guinada para o norte. Enquanto desciam pela encosta escarpada e sinuosa da cordilheira, os dois viajantes podiam avistar mais das planícies além.


A nordeste, o terreno era árido e rochoso, não muito diferente das caatingas da Cornália. A noroeste, porém, campos relvados ondulavam sob a força do vento, exibindo tons de folhas que variavam do verde habitual ao vermelho exótico.


Aquelas plantas rubras, que também margeavam a trilha, eram típicas de Dragona. Incluíam grama, arbustos e árvores, com folhagem variando do rosa sutil ao carmesim mais intenso, bem como caules escuros, alguns quase negros.


Pouco depois do meio-dia, Zé Calabros e Mara'iza avistaram a primeira cidade de Dragona: Roquepasse, no indistinto limiar entre campina e sertão. Chegariam ali antes do anoitecer.


"Finalmente!", desabafou Mara, apoiando-se em seu cajado. "Doze dias nas montanhas! Minhas pernas estão exaustas, mal posso esperar para dormir novamente numa cama!"


Zé estava surpreso com o tamanho da cidade, que rivalizava São Vatapá. "Mas essa cidade não é seu destino, né, Malinha?"


"Não, ainda temos vários dias de viagem, mas poderemos descansar um pouco e esperar a próxima caravana", ela respondeu. "Aí sim, chegaremos ao nosso destino verdadeiro, a capital real de Dragona, Ferônia!"


"Será que vai ter confusão pelo caminho?"


"Estamos agora na civilização, ogro!", ela respondeu num tom zombeteiro. "Duvido que tenhamos grandes perigos à frente. Aqui, há a força da lei e a autoridade de um rei!"


"E daí, Malinha?", Zé retrucou. "Desde quando isso impediu que aparecesse gente ruim nesse mundo?"


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Por volta da metade da tarde, o sertanejo e a jovem magista passaram pelo arco de mármore que precedia a cidade. As bandeiras nacionais, de cores vermelha e amarela, flamulavam nos galhardetes, exibindo o brasão de dois dragões protegendo a coroa.


A postos na entrada da cidade, guardas avaliavam os recém-chegados. Usavam bacinete metálico na cabeça e vestiam armadura de brigantina enegrecida sobre a farda vermelha. De armas, tinham lanças e escudos em mãos, mais os sabres à cintura. Sisudos, menearam a cabeça aos viajantes, mas não os abordaram.


Zé e Mara atravessaram a periferia, de casas pequenas e ruas irregulares, e seguiram para o centro, onde prevaleciam construções altas de alvenaria, similares aos casarões da Cornália. Logo chegaram a um parque arborizado, circundado pelo intenso mercado.


Uma multidão tomava toda a vista, visitando lojas e barracas de todos os tipos. Agricultores, artesãos e alquimistas ofereciam produtos e serviços numa variedade que Zé não via desde o bloqueio dos cangaceiros em sua terra natal. Nas sombras do parque, poetas, pintores e atores exibiam suas artes.


Escorando-se na parede mais próxima, Mara'iza checou as algibeiras em sua bolsa. "Há muito a fazer", resmungou. "Comer uma refeição quente, verificar o itinerário das caravanas, procurar hospedagem, renovar rações, comprar roupas novas..."


"Roupas?", Zé Calabros olhou para suas próprias vestimentas, sujas e fedidas após a jornada pelas montanhas. "Verdade, que as nossas já estão surradas."


"Não se trata apenas do estado delas! Dragona é uma nação de nobres, e nós parecemos dois caipiras!", a jovem gazzirana murmurou enquanto contava as moedas nas algibeiras. "Esqueceu-se de que perdi minha carta de recomendação? Quando chegarmos à capital, precisaremos causar uma boa impressão a nossos anfitriões!"


Diante da explicação, Zé reparou nas vestimentas dos transeuntes. Não era difícil diferenciar o extrato social de cada um na multidão. Até a compleição física era um indicador: os mais elegantes tendiam a exibir tez alva, olhos claros e cabelos lisos. Negros e mestiços eram mais comuns entre serviçais e comerciantes.


Os homens de destaque trajavam calças longas, sapatos de couro, camisa, colete e casaca colorida, um excesso de tecido que parecia deveras desconfortável sob o sol vespertino. Barbas e bigodes, quando presentes, eram artisticamente aparados. Chapéus ou cartolas eram comuns, e muitos, mesmo os jovens, portavam bengalas.


As mulheres mais elegantes, por sua vez, usavam vestidos longos, com armações que avolumavam suas ancas. Algumas expunham ombros ou braços nus, mas não mais do que isso. Os cabelos, presos em coques ou tranças, eram protegidos por chapéus delicados, véus ou barretes. Contra o calor, portavam leques ou sombrinhas coloridas, quando não eram acompanhadas por um serviçal com guarda-sol.


Enfim, Mara terminou de contar seus recursos. "Tenho mais do que o suficiente para nossas necessidades, mas ficarei sem moedas de baixo valor. Teremos de encontrar quem troque dinheiro."


"Bora procurar uma estalagem, então", Zé sugeriu. "Não tem lugar melhor pra ficar sabendo das coisas."


Não demoraram a encontrar um local que parecia confortável o suficiente. "Umbral do Viageiro", dizia a placa sobre a entrada.


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"Não temos quartos individuais", disse o estalajadeiro, um homem troncudo de bigode avantajado. "Cinco cobres por cama. Se quiserem um baú com cadeado para seus pertences, uma prata por noite. Refeição, paga separado."


Mara'iza jogou dez centos-avos e um vintém sobre o balcão.


Enquanto pesava as moedas para conferir seu valor, o estalajadeiro estranhou a cunhagem. "De onde é esse dinheiro?"


"Gaz'zira, minha terra", a menina respondeu. Em seguida, exibiu uma moeda maior, prateada com borda dourada. "Por gentileza, você sabe onde posso trocar isto?"


"Um drakkar?", o homem resmungou. "A senhorita não vai encontrar quem queira isso por aqui, não. Moedas kalimnorianas estão proibidas em toda Dragona."


"Pensei que Dragona e Kalimnor fossem nações amigas", Mara estranhou. Em seu pesado sotaque, os nomes soavam engraçados: "Du'ragona", "Karímu'nor".


"Não sabia, senhorita?", perguntou o estalajadeiro. "Estamos em guerra já faz nove anos!"


A jovem não podia acreditar. Para ela, o mundo estava em paz, não ouvira falar de nenhuma batalha ou ataque recente. "O padrão do drakkar pode ser kalimnoriano", tentou argumentar, "mas a cunhagem de minhas moedas é gazzirana".


"Não importa", o homem retrucou. "De moeda estrangeira, só se aceita dobrão, vintém e cento-avo, é a lei. Mercador disposto a trocar, só se for algum com negócios além-mar, mas Roquepasse não é rota de gente assim. Não temos litoral, quem passa por aqui ou vem da Cornália, ou do interior dragonino."


Mara guardou a moeda e, após longo suspiro, voltou-se ao sertanejo. "Teremos que poupar, ogro. Repentinamente, a maior parte de meu dinheiro perdeu o valor."


"Calma, Malinha", Zé Calabros pôs a mão no ombro dela. "Tenho uns trocados também. Vai ficar apertado, mas dá da gente seguir estrada!"


"Para onde vão?", o estalajadeiro questionou. "Lenhanova? Fortoeste?"


"Ferônia", disse Mara'iza. "Sabe quando partirá a próxima caravana?"


"Depois de amanhã", ele respondeu. "É bom se prepararem, que o caminho é bem longo. Toma uns dez dias de viagem, boa parte disso atravessando as Planícies Ardentes."


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Embora Mara'iza quisesse adquirir suprimentos, o cansaço a impeliu a repousar pelo resto da tarde. Zé saiu para reservar os lugares na caravana. Na volta para a estalagem, já sob crepúsculo, estranhou como, ao contrário de sua terra natal, o comércio fechava ao anoitecer, tornando as ruas ermas e escuras. Os dois acabaram dormindo cedo naquela noite, cada qual em sua cama.


Voltaram ao mercado pela manhã. Após alguma procura, foram indicados a uma alfaiataria. Sem dinheiro suficiente para os vestidos mais elegantes, Mara teve de se contentar com os que podia comprar. Enquanto as medidas dela eram tomadas para o ajuste das roupas, Zé Calabros decidiu procurar suprimentos.


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Nas ruas do mercado, Zé acabara de encher o embornal com rações de viagem, quando um urro monstruoso troou nos céus. Imediatamente, o sertanejo voltou-se ao alto, procurando a origem daquele ruído assustadoramente familiar.


Um dragão vinha dos céus a sudeste. O monstro, ainda juvenil, tinha uns sete ou oito metros de comprimento, inclusos o longo pescoço e a cauda. As majestosas asas coriáceas exibiam uma envergadura mais ou menos do mesmo tamanho.


Zé cerrou os punhos, estreitou os olhos e rangeu os dentes, aguardando o ataque contra a cidade. Notou, contudo, que não havia pânico no mercado. No máximo, os estrangeiros, na maioria cornos como ele, apontavam deslumbrados para o céu.


Relaxando o corpo e expirando aliviado, o sertanejo acompanhou o movimento da criatura, que passou a sobrevoar em círculos, descendendo rumo a uma torre alta nas proximidades do parque. Enquanto o dragão pousava, Calabros notou uma pessoa sentada sobre o monstro, conduzindo-o como um cavaleiro faz com seu cavalo.


"Nunca viu um dragão antes, corno?", uma voz veio de trás. Era um dos guardas da cidade, zombando do claro nervosismo do cabra.


"Já vi sim, senhor!", Zé se voltou ao soldado. "Mas não um que fosse amigo, muito menos servindo de montaria! O sujeito tem que ser muito macho pra cavalgar um bicho desses!"


"Um cavalga-draco é chamado dragonte, mas o dragão não é apenas montaria", explicou o soldado. "Homem e fera são irmãos em armas, treinaram para lutar e sangrar juntos. As esquadras dragontinas são a elite guerreira de nossa nação!"


Zé se virou novamente para a torre, onde ainda era possível vislumbrar as asas e longa cauda da fera. "E o que diabos esses daí vieram fazer nestas bandas?"


"Eles vêm com frequência. Trazem e levam notícias e correspondência. Amanhã, partirão de volta para a capital."


"É pra lá mesmo que tô indo", Zé sorriu discretamente, cerrando os punhos. "Ainda quero ver um bicho desses bem de perto!"


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No amanhecer seguinte, sob os primeiros raios de sol, Zé e Mara deixaram a estalagem e seguiram para a saída leste da cidade, onde a caravana se preparava para partir.


Mara usava o vestido mais humilde dentre os que comprara: uma peça azul única. Nos pés, sandálias de couro. Na cabeça, um bonnet branco que lhe cobria os cabelos e sombreava-lhe a face. Poderia ser confundida com uma delicada dama, não fosse a bolsa e o grimório a tiracolo, a adaga na cintura e o cajado em mãos.


Em contraste, Zé, de camisa aberta, calça surrada e alpercatas, continuava tão caipira como sempre. Sobre o ombro, levava um baú pesado, com as roupas e apetrechos que os dois adquiriram no dia anterior. Não se importava com o peso; pelo contrário, carregá-lo era um exercício bem-vindo.


No local combinado, quatro carroças eram aprontadas para a viagem, os caravaneiros ocupados em carregá-las com mercadorias. Três cavaleiros acompanhariam a viagem, todos portando sabres e garruchas, para os perigos eventuais do caminho.


Com a chegada dos últimos passageiros, o comboio deixou Roquepasse, sob o sol nascente que acossava os olhos dos viajantes. A estrada seguia para o oriente, através da planície relvada, acompanhando o sopé da cordilheira ao sul.


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Após as primeiras horas, os campos relvados deram lugar a um terreno rochoso de vegetação rala. "Estamos entrando nas Planícies Ardentes!", avisou o condutor da carroça, que apontou para uma fenda distante ao norte, de onde saíam vapores escaldantes. "As águas daqui são quentes e sulfurosas. Não queiram se banhar nelas!"


Sentada na carroça, Mara deixou o grimório de lado ao notar um panfleto nas mãos do passageiro à frente. "O que é isso?", questionou curiosa.


O passageiro, um mercador roliço e simpático, ofereceu o folheto impresso. "São as notícias de hoje, quer dar uma olhada?"


Mara'iza agradeceu e, pegando o papel, pôs-se a ler as notas.


Foi quando Zé, sentado ao lado dela, percebeu uma ilustração no panfleto: a caricatura de um homem de cartola, vestido de negro da cabeça aos pés, seu rosto oculto por sombras. "Quem é esse cabra da peste?", perguntou ao reparar nos olhos redondos, largos e vazios da sinistra figura.


"O Sombra Mascarado", Mara'iza respondeu após ler a notícia. "Um ladrão de casaca que tem atacado os ricos da capital. Aqui diz que seu último golpe ocorreu há três dias. Sua vítima, ninguém menos do que o próprio Duque de Ferônia!"


"Arre égua!", Zé estalou os punhos. "Se pego um sujeito desses, quebro-lhe a fuça!"


Mara, sem encontrar qualquer notícia interessante, repassou o panfleto ao colega. "Isso não me importa. Meu objetivo é ter acesso à Academia Arcana e estudar as magias do fogo!"


Zé avaliou a figura por mais algum tempo, mas logo sua atenção se voltou ao guincho monstruoso que veio do céu. Todos na carroça se voltaram ao alto, onde viram o dragão e seu cavalgante, os mesmos do dia anterior, passarem acima, rumo ao leste.


"É, Malinha, você tá mais que certa", o sertanejo murmurou, ainda admirando o majestoso ser de escamas negras e douradas. "Não vim nessa viagem pra encrencar com bandido! Eu quero é ver do que um monstro desses é capaz!"


O dragão logo sumiu no horizonte. Bem mais lenta, a caravana seguiu na mesma direção.


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Três dias atrás...


Anoitecia em Ferônia, capital do reino dragonino. Os raios finais do sol avermelhavam o céu sobre as montanhas ocidentais, e a escuridão se alastrava rápido. O calor era opressivo, mas as nuvens ameaçavam chuva durante a noite.


Nos limites superiores da cidade, a carruagem seguia pela longa via ladrilhada, margeada por bosques verde-rubros. Parou diante da propriedade dos Felisneros, e os guardas, reconhecendo o brasão da família nas portas do veículo, abriram os portões. Desimpedida, a diligência atravessou os belos jardins e, circundando a fonte ornada em frente à mansão, estacionou diante dos degraus para o pórtico de entrada.


O condutor tocou um sinete para avisar da chegada, então desceu da boleia para abrir a cabina, curvando-se em reverência ao passageiro: "Vossa Alteza, estamos em casa".


O nobre ocupante desceu da carruagem e subiu a escadaria. No topo, as portas da residência se abriram, e, do interior, surgiu o mordomo em saudação: "Sereníssimo senhor!"


"Meu caro Baltazar", Duque Felisnero retirou a cartola e entregou-a ao servo. "Que novidades me traz esta noite?"


Em resposta, o mordomo retirou do bolso interno do paletó um envelope lacrado com o selo da realeza.


"Ah, a missiva que eu tanto ansiava!", o duque, satisfeito, tomou a carta para si. Ansioso por lê-la, adentrou a residência.


Chegando ao salão principal, contudo, foi abordado pela esposa. "Querido", disse a duquesa, "nossa filha veio nos visitar. Aguardou-o por mais de uma hora, mas, cansada de esperá-lo, partiu há pouco".


"Bah! Queria muito vê-la!", o duque resmungou irritado. "Atrasei-me por culpa do próprio marido dela! O imprestável ocupou-me com reclamações inúteis por boa parte da tarde!"


"Uma pena", disse a senhora. "Insisti que aguardasse um pouco mais, mas ela precisava partir antes do anoitecer."


"Bem, talvez tenha sido melhor assim", ele suspirou, exibindo a carta lacrada. "Esta noite, tenho um assunto urgente a tratar."


Pedindo licença à esposa, o Duque Felisnero subiu as escadas para o segundo andar e trancou-se na biblioteca. Com um isqueiro a gás, acendeu as velas do candelabro sobre a mesa de estudos. Sob a luz bruxuleante, abriu o envelope e leu várias vezes a mensagem. Após decorar cada detalhe, sacou novamente o isqueiro, desta vez para queimar a missiva.


Antes que a chama tocasse o papel, contudo, o duque sentiu uma pancada repentina na nuca. Lançado ao chão pelo golpe traiçoeiro, o nobre, atordoado, esforçou-se em erguer o rosto e fitar seu algoz.


O agressor afastava-se na penumbra. Vestia-se elegantemente, com fraque, luvas, capa e cartola. Uma máscara negra, pendendo como um véu, encobria-lhe toda a cabeça, ocultando feições, cabelos e até mesmo o pescoço.


O duque encheu o peito para gritar por socorro. "Acudam! Invasor!"


O misterioso vulto, por um instante, voltou-se para o duque, revelando os olhos redondos, largos e brilhantes como os de uma coruja. No momento seguinte, afastou-se da vista, desaparecendo entre as trevas da biblioteca.


"Meu senhor?", o mordomo Baltazar bateu à porta. "Vossa Alteza está bem?"


Duque Felisnero ergueu-se com dificuldade e cambaleou até a entrada. "O Sombra Mascarado está aqui!", abriu a porta e apontou para a escuridão. "Convoque os guardas!"


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O sombrio invasor saltou pela janela, segurando o parapeito por um momento para amortecer a queda. Pousou suavemente no chão, vários metros abaixo.


Um guarda em ronda, ouvindo os gritos de socorro do duque, veio dos jardins, espada em mãos. "Pare e renda-se!", ordenou ao fugitivo.


O vulto mascarado avançou em silêncio sepulcral, sacando o sabre que levava à cintura. Com agilidade sem par, fintou o adversário, evitando-lhe a lâmina, e, num talho célere e certeiro, feriu-lhe no braço.


O guarda gritou de dor e largou a espada. Em seguida, recebeu um chute no estômago, que o levou ao chão. Quando retomou o fôlego, seu algoz já corria para o bosque além dos jardins. "Aqui!", o defensor ferido gritou. "Ele fugiu por aqui!"


Mais sentinelas vieram, acompanhados por cães de caça. Soltos das coleiras, os animais dispararam em perseguição. Guiados pelos latidos, os guardas atravessaram os bosques tenebrosos, enfim reencontrando as feras aos pés do muro da propriedade.


Do vulto mascarado, contudo, não havia sinal.


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"Ele escapou, Vossa Alteza", lamentou o capitão da guarda. "Saltou o muro antes que os animais pudessem alcançá-lo."


"Os muros têm quase quatro metros de altura", observou o mordomo Baltazar. "É impossível que um homem os transponha com tal celeridade!"


Sentado no sofá, Duque Felisnero permaneceu em silêncio. A duquesa, tratando-lhe a concussão, tentou confortá-lo. "Felizmente, o ladrão não teve chance de roubar nada de valor."


Felisnero levou a mão à nuca, sentindo o dolorido inchaço da pancada. "Não faz sentido, o biltre já estava escondido em nossa casa. Se não me agredisse, não o teríamos percebido. Por que atacar-me e fugir de mãos vazias?"


"Talvez quisesse matá-lo", presumiu o capitão.


"Não", o nobre discordou. "Se intencionasse minha morte, tê-lo-ia feito. Eu estava indefeso, e o Sombra Mascarado jamais agrediu ninguém que não o ameaçasse. Como eu poderia tê-lo provocado?"


O duque refletiu por instantes, recordando-se dos detalhes anteriores à pancada. Subitamente, chegou à terrível conclusão. "Não pode ser!", levantou-se alvoroçado do sofá e correu para o andar de cima.


Espantados com a reação repentina, esposa, capitão e mordomo o seguiram. Encontraram-no na biblioteca, escarafunchando os arredores da mesa de estudos.


"Isso é terrível!", o duque repetiu em pânico até se convencer de que a busca era inútil. Enfim se erguendo, revelou aos demais o que acontecera ali. "A missiva desapareceu! O facínora atacou-me para levá-la! A coroa de Dragona está ameaçada!"


 

Nas sombras, tramam os degradados. Ó, conspiração! Ignóbil traição de torpes corações aviltados!


Jamais te permaneças silente, pois quem se dispõe a tal engodo, não engana só o rei presente, mas trai também a todo o povo.


Ante tão abjeta hipocrisia, brada, cidadão! Ergue-te a mão, enfrenta a sórdida felonia!


Nega a quem, com sorriso faceiro, oferta-te um bem porvindouro. É um mentiroso por inteiro que, ao invés, traz o mal agouro.


Teme o ser vil, ameaça a todo o reinado! Espectro sutil, traiçoeiro Sombra Mascarado!


 

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