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Tiago Moreira

Capítulo 1: Uma bela de uma aventura


 
Capítulo 1: Uma bela de uma aventura

A travessia pelas Planícies Ardentes foi longa e tediosa. Para manter-se ocupada, estudava seu grimório durante o dia, mas percebia ter cada vez menos a aprender com o livro. À noite, trabalhava em seu cajado, entalhando glifos na madeira, mas o cansaço logo a vencia. Zé, por sua vez, descia da carroça e seguia a pé pela manhã, dormia boa parte da tarde e se exercitava no clima mais ameno da noite.


A viagem acompanhava o sopé da cordilheira meridional. Após alguns dias, uma segunda serrania despontou ao nordeste e foi se expandindo mais e mais sobre o horizonte oriental. Na tarde do oitavo dia, os viajantes alcançaram o encontro das duas cordilheiras, separadas por um sinuoso vale.


Ali, guardando a passagem, localizava-se a cidade de Fortoeste. Aquele era o destino de alguns passageiros da caravana, mas novas faces também se juntaram ao grupo. A estadia foi breve. Na manhã seguinte, já reabastecido, o comboio continuou para o leste, através do vale.


A travessia tomou um dia inteiro, sem eventos. Ao anoitecer, os viajantes alcançaram o povoamento na outra ponta: Guardragões, cidade formada nos arredores de imponente fortaleza homônima, às margens do vasto Rio Dragarganta.


"Aqui termina nossa viagem", avisaram os caravaneiros, já descendo das carroças para descarregá-las. "Ferônia está a poucas horas de barco, basta subir o rio."


Exaustos da jornada, Zé e Mara se despediram do comboio e procuraram uma estalagem. Procurariam uma embarcação na manhã seguinte.


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Mara'iza despertara cedo, antes mesmo das primeiras luzes do dia. Estava ansiosa pela proximidade de seu destino. Há quanto tempo deixara as terras da família? Três meses? Mais? Perdera a noção desde que caíra no mar, no trajeto entre Adagalha e Dragona.


Antes mesmo do desjejum, a moça pagou por um banho. Foi levada pela arrumadeira a uma sala reservada. Ali, trancou-se, sozinha, à luz dos lampiões, então despiu-se e entrou na tina de água morna. Refletiu sobre as águas da região, que já brotavam quentes das profundezas, como em sua terra natal, Gaz'zira. Tentou relaxar, lavando os cabelos e ensaboando o corpo, mas a inquietude permanecia.


Deixando a tina, Mara'iza parou diante do espelho. Sentia-se diferente. As olheiras lembraram-na das noites mal dormidas ao relento, a tez clara ardia após tantos dias ao sol, e os cabelos crescidos caíam além dos ombros. Parecia mais adulta, pensou. Apalpou os pequenos seios, mas acabou decepcionada ao não os perceber maiores. Nem tudo havia mudado.


Talvez a diferença fosse menos física e mais emocional, concluiu. Não era a mesma menina que partira de casa. Pensou no incidente em alto-mar, na travessia desesperada pela tempestade, nas agruras e perigos da Cornália, nas batalhas contra os cangaceiros. As lembranças a fizeram sorrir. Tornara-se mais poderosa. E estava livre. Livre dos grilhões do passado. Da imposição de seu clã. Da montanha de sombras que a perseguira.


Interrompeu as divagações. Precisava aprontar-se, ou arriscava perder o navio. Prendeu os cabelos num coque e aplicou em seu pescoço um pouco de perfume, essência de cerejeira que guardara por toda a jornada. Enroupou-se, então, num vestido de mangas curtas, verde como seus olhos. Calçou sandálias, pôs luvas brancas e, voltando-se de novo a seu reflexo, animou-se com o resultado. Não eram vestes luxuosas, nem parecidas com as de uma sam'rai, mas faziam-na sentir-se nobre, elevada, como era seu direito de nascença.


Quando Mara finalmente deixou a sala de banhos, a madrugada já cedia lugar ao crepúsculo.


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Em meados da manhã, o apito do navio tocou várias vezes, anunciando a partida. Movida a vapor, a embarcação liberou colunas de fumaça pela chaminé e moveu as pás traseiras, deixando a doca e afastando-se da margem. A viagem seguia para o sudeste, contra a correnteza.


Atrasados, Zé e Mara quase perderam o embarque. Em parte, culpa dele, que demorou a acordar e se aprontar. Sem vagas no convés inferior, acabaram por ter de comprar assentos no segundo convés, mais caros, mas de onde a vista era mais impressionante.


Assim que o sertanejo colocou o baú de bagagem no chão, Mara pôs o cajado de lado e se aproximou. "Vista-se direito, ogro!", reclamou, puxando-o para si e terminando de abotoar-lhe a camisa e fechar o paletó. "Você ainda se parece com um viajante maltrapilho! Onde está sua gravata?"


"Larguei no baú, sei lá como dar nó naquela coisa!", ele respondeu irritado. Os sapatos lhe eram estranhos, e as calças e o paletó incomodavam naquele calor. "Não se aperreie tanto, Malinha, que não carece de tanta formalidade!"


"Isso é importante, ogro idiota! Estamos lidando com a nobreza!", Mara'iza retrucou com rispidez. Quando os olhares de ambos se encontraram, contudo, ela enrubesceu e desviou o rosto. Suspirou, percebendo o próprio nervosismo, e se afastou, cabisbaixa.


"Onde tá indo, Malinha?", Zé questionou.


"Caminhar, espairecer", ela murmurou antes de deixá-lo.


Calabros sentou-se, um pouco contrariado. Ele também queria caminhar pelo barco e observar a paisagem, mas alguém precisava vigiar o baú. Mais que as roupas e pertences dos dois, ali estava guardado o grimório e a bolsa de Mara. Era estranho vê-la sem levá-los a tiracolo, Zé pensou. Sem se dar conta, sorriu ao admirá-la. A magrelinha ficara bem bonita toda ajeitada, ele tinha de admitir.


Foi quando o passageiro ao lado, um bigodudo bem-vestido, riu. "Sua namorada parece-me bem inquieta", comentou. "Mulheres são assim mesmo, vá se acostumando! Depois do casamento fica pior."


"Ah, ela não é minha namorada, não", Zé virou-se ao homem. "A gente é só amigo."


"Ah, peço desculpas pela intromissão", o senhor estendeu a mão. "Prazer, sou Balbino Câmara, comerciante."


"Zé Calabros", cumprimentou, "a seu dispor".


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Mara'iza tentava se acalmar. O atraso a deixara ainda mais ansiosa, e discutir com Zé seria perda de tempo. A vista majestosa a distraiu um pouco, porém. O rio era largo, profundo e volumoso, quase como um mar correndo pela depressão entre as montanhas.


Caminhando pelo convés superior, Mara chegou à cabina de comando, onde o capitão e o timoneiro riam de alguma piada há pouco contada. "Com licença", ela se anunciou.


O capitão, um homem de idade, se virou para ela. "Em que posso ajudá-la, senhorita...?"


"Mara'iza", apresentou-se. "Em quanto tempo chegaremos a Ferônia?"


"Umas quatro horas", ele respondeu, fazendo um sinal para o timoneiro e deixando a cabina para conversar com a garota. "Aproveite a viagem, senhorita! Aprecie esta paisagem ímpar!", apontou aos paredões rochosos que delimitavam ambas as margens.


"É deveras impressionante, de fato", ela se apoiou na balaustrada e observou as águas. "Creio que nunca vi um rio tão vasto!"


"O Dragarganta é a espinha da nação", o capitão comentou. "Corta Dragona de sul a norte, através das cordilheiras, até o oceano. Todas as nossas riquezas passam por estas águas!"


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"Tem dragão por aqui?", Zé Calabros perguntou, perscrutando os cumes das serras.


"Ah, eles fazem os ninhos nas montanhas, estão por toda parte", Balbino respondeu. Tentou procurar por sinais dos bichos, mas nada encontrou. "É difícil de vê-los. Os maiores dormem boa parte do tempo, os pequenos não chamam tanta atenção."


"Será que vai dar de ver algum lá em Ferônia?"


"Talvez veja algum dragonte patrulhando os céus, mas dificilmente mais do que isso. Só a realeza e os nobres mais influentes têm acesso aos dragões."


"E os danados são perigosos?", o sertanejo inquiriu.


"Os dragões? Nem tanto!", o comerciante riu jocosamente. "Já quanto aos nobres, aconselho tomar muito cuidado com eles."


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Mara'iza agradeceu ao capitão e voltou a caminhar. Desceu ao convés inferior, onde notava-se, pelas vestimentas e maneirismos, que a maioria dos passageiros era de classe baixa: pequenos mercadores, trabalhadores braçais e migrantes da Cornália. Gente fugindo de sua terra natal, como ela própria.


Pensar em sua situação trazia à tona os receios e dúvidas. Abandonara sua terra e desonrara a família, jamais poderia retornar. E se seus planos não se concretizassem? E se seu sonho fosse apenas uma tolice?


Mara suspirou profundamente. Fechou os olhos, concentrou-se, sentiu a presença do grimório, seu foco arcano, trancado no baú no convés acima. Sentia-se tão vulnerável sem ele. Pensou em evocá-lo para suas mãos ali mesmo, mas conteve-se. Poderia assustar as pessoas com tal demonstração.


Ainda inquieta, decidiu voltar a seu lugar. "Talvez o ogro idiota já tenha arrumado alguma confusão", zombou em sua língua natal.


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Zé sorriu quando Mara'iza retornou. Apresentou-a ao Senhor Balbino, então ajeitou-se no banco para dar espaço a ela.


"Seu amigo, Zé Calabros, estava a me contar sobre a viagem de vocês", o comerciante puxou conversa. "É uma magista, não? Impressionante!"


Num primeiro instante, Mara torceu os lábios em reprovação por Zé falar dela a um estranho. Porém, o orgulho logo a tomou, e ela sorriu daquele seu típico jeito arrogante. "Sim! Sou aprendiz em abjuração e arcanismo, e desejo treinar nas artes do fogo, na academia de Ferônia."


"Ah, a Academia Real!", Balbino Câmara sorriu, "Não sou lá muito conhecedor desses assuntos, mas até que consiga sua audiência, tome cuidado. Não exiba suas habilidades em público."


Ela estranhou o aviso. "Por que diz isso?"


"Os magistas de Dragona são militares, cavaleiros fidalgos a serviço da coroa", ele explicou. "Para aqueles que não servem à nação, é proibido o uso de magia, a menos que você receba uma permissão explícita."

"Isso é absurdo!", ela protestou.


"Magia é poder, minha cara, e a nobreza teme poder nas mãos de plebeus e estrangeiros. Mas você não terá dificuldades se tiver contatos influentes. O Senhor Calabros me disse que serão acolhidos por uma família nobre."


"Sim", ela meneou a cabeça, então se esforçou em dizer o nome da família, que tinha sílabas difíceis de replicar em seu sotaque carregado. "Fósu'téru...", murmurou, repetindo várias vezes na tentativa de reproduzir os sons corretos. "Fósu'té... Foz-té..."


Senhor Balbino deduziu o que ela queria dizer. "Foster!"


"Exatamente!", ela sorriu, agradecida, mas acanhada pela dificuldade de pronúncia. "Você os conhece?"


"Sim, eu já obtive financiamentos com eles. Os Fósteres são muitos conhecidos. São banqueiros, entre outras coisas. Mas não são nobres de verdade."


Zé, até então calado, estranhou. "Eita lasqueira, e são o quê, então?"


"O patriarca da família comprou um título de nobreza."


Mara ficou intrigada. "Eu não sabia que um título de nobreza pode ser comprado."


"Baronatos e viscondados, sim, mas não acima disso. São títulos menores, sem hereditariedade. Eu mesmo já pensei em me tornar barão, mas o preço é muito elevado para minhas posses."


"Então, esses Fósteres são bem endinheirados", Zé observou.


"Sim, estão entre as famílias mais abastadas de Dragona, há quem diga que mais ricos do que a realeza", Balbino respondeu ao sertanejo, então se dirigiu à magista. "É incrível que tenha contatos com eles, senhorita, mas também não é de todo inesperado. Os Fósteres são, afinal, muito mais do que apenas banqueiros."


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A conversa continuou por toda a viagem. Balbino falou muito sobre Dragona. Isolada na península no extremo nordeste do continente, fronteiriça apenas com Cornália e Vol'kor, o reino dependia muito do comércio com terras além-mar. O Rio Dragarganta ligava as principais cidades: Ferônia, a capital nas montanhas ao sul, Dracórnea, na confluência de rios ao centro, e Câninna, o grande porto no litoral ao norte. Terras agrícolas orientais e ocidentais abasteciam os centros urbanos.


Conforme o navio seguia rio acima, outras embarcações, de transportes a pesqueiros, se tornavam mais frequentes. Pequenas comunidades surgiam, espremidas entre as margens e os paredões rochosos.


Então, enfim, apareceu um segundo rio, vasto, mas menor que o Dragarganta. O encontro das águas produzia um redemoinho, lançando jatos constantes para o alto. Sacolejando diante das fortes ondas geradas, o navio se aproximou da margem oeste, distanciando-se do centro do turbilhão.


"O que é isso?", Mara estranhou o fenômeno. "Essas águas são um afluente ou um braço do rio?"


"Ambos e nenhum", o Senhor Balbino respondeu, apontando na direção do segundo curso d'água. "Esse é o canal para o Rio Feralança, que corre para o litoral leste. A voragem joga água do Dragarganta para ele, permitindo a navegação."


"Esse fenômeno é natural?", ela questionou.


"Não, é obra do rei-destino."


A menção fez um calafrio percorrer a espinha de Zé. "Diabo Velho!", ele resmungou, fazendo o sinal do Divino Pai. "Vá de retro, cabrunquento!"


"E não é o único lugar assim", o comerciante continuou. "Há milhares de anos, as cordilheiras da península a dividiam em várias regiões, mas o rei-destino, ao conquistá-las, unificou-as pelas águas. Se descer o Dragarganta, bem no centro de Dragona, você encontrará uma segunda voragem, muito maior, alimentando canais para vários outros rios."


"Incrível!", ela exclamou, vislumbrando o incrível fenômeno. Foi quando, do outro lado do redemoinho, às margens de ambos os rios, percebeu os contornos de uma grande cidade, destacando-se contra a serra além. "Que lugar é aquele?"


"Aquela, minha cara", Senhor Balbino observou, "é Ferônia!".


Mara sorriu. Seu coração acelerou inquieto.


A cidade se distribuía sobre um aclive gentil ao pé da cordilheira. Nuvens de fumaça indicavam atividade industrial. As construções eram pequenas e densas nas proximidades do rio, tornando-se mais esparsas, mas também mais luxuosas, conforme o terreno se elevava. Bosques verdes-rubros tomavam as regiões superiores, e, além deles, uma muralha defendia um planalto mais alto.


Contornando o redemoinho, o navio deixou o turbulento encontro de águas. Uma vez de volta à correnteza natural do Dragarganta, a embarcação migrou da margem oeste para a leste, aproximando-se da cidade.


Com o sacolejo diminuindo, Mara'iza se levantou e seguiu à balaustrada, para melhor avaliar a paisagem urbana.


O navio soou o apito, anunciando a chegada iminente. Seguia na direção de uma fortaleza com três torres, com uma pira acesa no topo da mais alta. Dezenas de docas se distribuíam à direita e à esquerda da estrutura, com incontáveis embarcações atracadas, dos mais diversos tamanhos e tipos.


Zé deixou seu assento e se aproximou de Mara. Foi quando percebeu a condição decrépita de um dos ancoradouros. "Olha ali, Malinha", apontou, "tem coisa errada!".


Até então absorta pela grandiosidade da cidade, a menina desviou o olhar para o porto. Uma doca estava em ruínas, cheia de caixotes queimados por um incêndio já extinto. Ao lado, estavam os restos parcialmente submersos de um navio cargueiro. Soldados isolavam o acesso ao local por terra.


Enquanto os dois viajantes observavam perplexos, o barco começava a atracar.


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"Foi um prazer conhecê-los", Balbino cumprimentou-os uma última vez assim que desceram ao cais. "Espero vê-los novamente, meus amigos. Não permanecerei muito tempo na cidade, mas, se precisarem de mim, encontrar-me-ão no Sota do Mercante, bem perto do porto."


"Não precisamos nos despedir ainda", Mara'iza sorriu graciosamente. "Poderíamos compartilhar uma charrete".


"Sinto muito, Senhorita Mara'iza", o comerciante apontou para o barco no qual vieram, de onde ainda desciam não só passageiros, mas também carga. "Terei de esperar descarregarem minhas mercadorias. Creio que vocês estão ansiosos por descanso e não desejo atrasá-los."


"Então, que Padim lhe acompanhe, seu Balbino", Zé apertou-lhe a mão. "E que as vendas aqui na cidade sejam abençoadas!"


"Obrigado, e que o Sol ilumine seus caminhos!", o comerciante sorriu. Voltou-se a Mara'iza, beijou-lhe a mão em reverência, então retornou ao barco para acompanhar os trabalhos da tripulação.


"Cabra porreta", Zé elogiou, carregando o baú sobre o ombro. "Pra onde agora, Malinha?"


"Para a mansão Foz-té!", Mara respondeu. Pegou sua algibeira, deixada no bolso do paletó de Zé, então contou as poucas moedas restantes. "Procuremos uma charrete."


Ela tomou a dianteira. Empunhava o cajado, mas não o usava para caminhar. Dava passos largos e apressados, mal conseguindo conter a inquietude.


Conforme deixavam a ponte-cais, Zé olhou novamente para a doca destruída. Curioso, pensou em parar e questionar os guardas, mas Mara disparava à frente. Teve de apressar o passo para não perdê-la de vista na multidão.


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"Foi o Sombra Mascarado, na noite passada!", respondeu o charreteiro assim que o veículo começou a se mover. "Atacou soldados, pôs fogo no cais, afundou um navio."


"Mas por que diabos ele fez isso?", Zé perguntou.


"Sabe-se lá!", respondeu o homem. "Falam de tudo desse encapotado! Que é ladrão, traidor, conspirador, espião... Mas ninguém tem certeza de nada!"


"Essa história tá me deixando encafifado!"


"Esqueça esse bandido, Carábu'ros-san", Mara insistiu. "Provavelmente nem cruzaremos seu caminho. Que a guarda e a lei lidem com ele!"


"Pode até não ser da minha conta, Malinha", Zé Calabros estalou os punhos. "Mas não gosto de bandido! Se cruzar com esse diabo, arrebento na porrada!"


O charreteiro deu uma gargalhada.


Mara'iza, porém, revirou os olhos e suspirou.


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Durante o trajeto, Zé, esfomeado, abriu o baú de bagagem e, de seu embornal ali deixado, pegou um pouco de ração. Ofereceu a Mara, que recusou. Ele sempre estranhava que ela não sentisse fome, mesmo sabendo que era o efeito de um feitiço. Enquanto comia em silêncio, ficou a observar a paisagem.


Ferônia era uma cidade impressionante, muito maior do que qualquer outra em que Zé já estivera. Mesmo Mara'iza estava fascinada, o único local a que podia compará-la era Seânia, capital de Athallantys, onde tivera uma breve parada após deixar Gaz'zira.


Saindo do porto, a charrete seguiu por um vasto mercado. Bazares, lojas e feirantes anunciavam mercadorias, que iam de alimentos e roupas a artesanatos e máquinas. Pessoas de diferentes etnias, nacionalidades e extratos sociais se misturavam na multidão barulhenta.


O caminho seguiu depois através de um parque arborizado, cortado por córregos de água morna. Ali, aproveitando a sombra, artistas faziam apresentações de dança, música e teatro, casais passeavam tranquilamente e idosos se reuniam para conversar e se desafiarem em jogos de tabuleiro.


Deixando o parque, a charrete cruzou o centro da cidade, com ruas largas, praças, lojas luxuosas e casarões altos. Entre os marcos, estavam o majestoso Teatro Municipal, que tomava toda uma quadra, e a deslumbrante Catedral do Sol, de domos e vitrais dourados. Depois, em lados opostos da Praça Felisnero, localizavam-se os palacetes da Assembléia Municipal e da Prefeitura, construídos em mármore.


A partir de então, adentraram os bosques da nobreza. As vastas propriedades eram cercadas por jardins e bosques e delimitadas por grades, muros ou cercas vivas. Ao longe, numa região mais alta, contrastando com as montanhas ainda mais além, Mara'iza percebeu uma fortaleza e várias torres despontando sobre a vegetação. "O que é aquilo?", apontou.


"É Caer'Wyrm, o Bastião das Serpes", disse o charreteiro. "É uma área militar, guarda a passagem para as terras da coroa e o castelo real."


Mara'iza se lembrou do que ouvira no barco, sobre as artes mágicas estarem sob controle militar. "A academia arcana fica ali?"


"Sim, e também as outras faculdades."


Mara sorriu. Estava tão perto! Conteve o ânimo, contudo, pois seguiam para outro rumo.


Deixando a via principal, a charrete seguiu por um caminho ladrilhado. Adiante, uma cerca viva delimitava a propriedade, e a entrada, sem portões, passava sob um arco metálico, no qual destacava-se o nome da família: "Foster".


O charreteiro conduziu o veículo através do arvoredo bem-cuidado, então estacionou o veículo no pátio diante da mansão. "Aqui estamos. Desejam que os espere?"


"Não será necessário", disse Mara'iza. Pegou cinco centos-avos e pagou o condutor.


Zé, carregando o baú no ombro, saltou do veículo.


O charreteiro ajudou Mara a descer. Depois, retornou ao veículo e partiu.


Zé Calabros tomou os degraus para a varanda do casarão. Contudo, notando a hesitação da companheira, voltou-se a ela. "Tá agoniada, né, Malinha? Não se avexe, não!"


Mara'iza tomou ar. Não fazia ideia do que a esperava, nem se conseguiria convencer a família de sua procedência. Como seria mais fácil se não tivesse perdido sua carta de recomendação! Quando estava para subir o primeiro degrau, um som, o crocitar de um corvo, chamou-lhe a atenção, fazendo-a procurar sua origem.


"O que foi?", o sertanejo olhou na mesma direção, a tempo de ver o pássaro solitário deixar as árvores e voar para longe.


"Não é nada", Mara murmurou nervosamente. Corvos traziam-lhe memórias indesejadas. "Apenas nervosismo. Espero."


Pousando o baú na varanda, Zé estendeu a mão a ela e auxiliou-a a subir os degraus.


Mara'iza sorriu, curvando-se gentilmente em agradecimento. Aproximou-se da porta, agarrou a argola da aldrava e bateu-a três vezes. Enquanto aguardava uma resposta, prestou atenção a uma placa envelhecida logo ao lado da entrada.


Nós somos os Fósteres, desbravadores de caminhos. Viajamos a terras exóticas. Tratamos com povos longínquos. Nas trevas, sem temores, perseguimos a alvorada. Pois nós somos os Fósteres, e esta é a nossa morada.


— Apolinário Austero Foster, 58 d.DN


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Grasnando, o corvo deu voltas ao redor da mansão. Do arvoredo, um segundo pássaro surgiu e se juntou a ele. Após uma troca de sons e acrobacias entre ambos, o primeiro voltou às copas das árvores. O segundo voou na direção da cidade.


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A porta se abriu. De dentro, apareceu um homem imponente e mal-encarado, apesar de bem-vestido. Era albino, com pele, barba e cabelos totalmente alvos. Tinha uns dois metros de altura e ombros muito largos. Protegendo os olhos azuis da luminosidade exterior, fitou os recém-chegados com expressão apática. "Sim?", perguntou num vozeirão assustador.


"Goai'satsu!", Marai'za balbuciou nervosamente, sem perceber que gaguejava não na língua comercial, mas em seu idioma natal. "Wat'shi wa Atsumi Mara'iza, wat'shi nyu'jin wa Tsé Carábu'ros..."


O albino ergueu a sobrancelha em estranhamento.


"Malinha", Zé a interrompeu. "Você tá falando toda esquisita!"


Ruborizada pela gafe, a moça tratou de acalmar-se. "Perdão!", curvou-se ligeiramente em respeito. "Saudações, eu sou Mara'iza, da família Atsumi."


"E eu sou o Zé Calabros, prazer!", o sertanejo estendeu a mão.


O homem, impassível, ignorou o cumprimento. "Meu nome é Gerwald, sou apenas o mordomo", murmurou, revelando um leve sotaque estrangeiro. "O que desejam nesta casa?"


"Desejo falar com o Senhor Bill Foz-té", Mara'iza informou. "Venho de Gaz'zira, estou aqui por recomendação de Pábu'ra, filha de Jin'a Foz-té."


O criado avaliou-os por um breve momento, então deu-lhes passagem. "Por aqui, por favor."


Os dois foram conduzidos por uma longa antessala cheia de retratos, alguns bem antigos e já desbotados. Tinham as devidas legendas: "Apolinário", "Tenébrio", "Artúrio", "Gilbertus", "Alessandros", e o mais recente, em destaque, "Abílius 'Bill' Foster", um senhor um pouco gordinho, de meia idade, óculos e cabelos recuando.


Chegaram então a um salão grande e alto. Próximo à entrada, poltronas diversas, ao redor de uma mesinha central. Além, uma longa mesa de refeições, com dezenas de cadeiras. Ainda mais distante, um espaço para bailes, próximo da dupla escadaria para o andar superior. Estátuas, quadros, animais empalhados e um número surpreendente de máscaras tribais, peças de armadura, armas e outros artefatos exóticos adornavam o ambiente.


Foi quando, dos fundos do salão, veio uma bela mulher, que empurrava a cadeira de rodas de um senhor de idade muito avançada. Casual e desenvolta, ela sorriu aos presentes ao se aproximar. Passou a mão nos cabelos negros curtos, ajeitando-os, e ajustou os óculos, que emolduravam os olhos castanho-esverdeados. "Ebúrneo?", referiu-se ao mordomo, "Quem são nossas visitas?".


O serviçal se voltou a ela. "Estes são Mara'iza Atsumi e Zé Calabros, Mestra Dri. Desejam falar com Mestre Bill. Ele ainda está lá fora?"


"Sim, está esgrimando com a Kari", a mulher se aproximou com o idoso da cadeira de rodas. "Vou chamá-lo. Enquanto isso, sirva uma bebida às visitas."


"Sim, senhorita", Gerwald aquiesceu, voltando-se aos dois viajantes. "Chá ou café?"


"Café!", respondeu Zé, sorridente. "Que corno não bebe chá, não!"


"Café", Mara'iza repetiu impulsivamente, corrigindo-se ao notar o próprio nervosismo. "Não, perdão! Chá! É melhor um chá!"


A mulher deixou o idoso próximo às poltronas, então cumprimentou os recém-chegados. "Prazer, sou Adriela Foster, mas podem me chamar de 'Dri', se preferirem", beijou-os no rosto, então apontou para as poltronas. "Sentem-se! Cuidem de meu avozinho enquanto chamo Bill."


Adriela se afastou, deixando as visitas com o velho na cadeira de rodas. Era um senhor magérrimo, careca, de barba branca e sobrancelhas grossas. Sua pele, queimada de sol, estava cheia de manchas e mais enrugada do que uma uva passa. O ancião ficou ali, carrancudo e silencioso, encarando Zé com um olhar penetrante e incômodo.


Desconfortável sob o escrutínio insistente, Zé Calabros virou-se à companheira e, mais uma vez, percebeu-lhe o nervosismo. "Malinha, você tá mais apoquentada que quando a gente pelejou com cangaceiro!"


"Não consigo evitar", ela admitiu. "Isto é muito importante para mim!"


"Não se aperreie. Se você quer uma coisa, tem que ir atrás sem medo. Se não der certo, então não deu, a gente sacode a poeira e tenta outra coisa."


Mara'iza sorriu para ele. Sem a arrogância costumeira seu rosto ficava mais bonito.


"Ei, garoto!", o velho chamou numa voz estridente. "Essa marca na sua cabeça, o que é?", apontou.


Zé tocou a cicatriz recente, vestígio do rasgo de uma bala que passara de raspão entre a testa e a têmpora. "Isso aqui foi um tiro de espingarda!", informou, lembrando-se da luta com Severino Barriga D'Água.


O ancião riu. "E dizem que ninguém nesse mundo aguenta bala na testa! Você é um moço de muita sorte, garoto!"


"Eu aqui vivo não tem nada a ver com sorte não!", Zé Calabros retrucou.


O vetusto abriu um sorriso maroto e sinistro, com dentes tortos, alguns faltando. "Parece que, pra chegar aqui, vocês tiveram uma bela duma aventura!", comentou num tom de excitação.


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Aos fundos da propriedade, sob a sombra do gazebo em meio aos jardins, dois duelistas cruzavam seus floretes de treinamento. Vestiam macacões brancos, cobrindo todo o corpo, e máscaras protetoras.


O exercício era metódico. Saudavam-se, então desferiam uma sequência de movimentos espontâneos: um, dois, três, quatro, cinco, seis. Entre estocadas, fintas, bloqueios e esquivas, tentavam se atingir, mas as disputas seguiam sem vencedor. Findada a série, paravam, reposicionavam-se e recomeçavam.


Foi logo após uma rodada que Adriela Foster chegou. "Irmãozinho, há visitas aguardando-o."


Antes da resposta, um novo duelo. Estocada, finta, evasão, finta, estocada, aparo. Como da outra vez, nenhum conseguiu atingir o outro. "Do que se trata, Dri?", um dos duelistas questionou, reposicionando-se. Em seguida, a dupla se cumprimentou e entrou mais uma vez em combate.


"Um bronco corno e uma garota que presumo ser gazzirana", Adriela informou.


Evasão, finta, golpe. "Garota gazzirana?", ele estranhou, distraindo-se no meio da sequência.


A adversária aproveitou o momento. Esquiva, finta e contra-ataque, fazendo a lâmina, felizmente cega e flácida, atingi-lo no pescoço. "Cortei-lhe a garganta, querido", provocou.


O homem riu, recuando e pondo o florete de lado. "Meus parabéns, Kari, a vitória é sua", pegou os óculos sobre um aparador e colocou-os na face. "Vamos nos trocar e recepcionar as visitas."


"Claro, Bill", a outra duelista concordou, removendo a máscara e revelando uma mulher jovem e bela, com lábios finos, olhos amendoados e tez alva. Limpou o suor da face, soltou os longos cabelos de tom de mel, e, sorridente, deu a mão ao oponente, seu marido.


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"Eu sou Abiliardo Foster, mas podem me chamar de Bill", ele se apresentou às visitas, então apontou para a jovem com a qual andava de mãos dadas. "E esta é Karina, minha esposa. Creio que já foram apresentados à minha irmã Adriela e ao Vovô."


Mara estranhou ao ver Bill. Esperava encontrar um senhor como o do retrato, mas adiante estava um homem jovem e esbelto, bem-afeiçoado, de cabelos negros curtos e rosto limpo. "É você o irmão de Jin'a Foz-té?", questionou.


"Gina? Não, sou sobrinho dela", ele ajeitou os óculos, então se sentou. "Você deve estar pensando em meu pai, Abílius, que infelizmente nos deixou há alguns meses. Dele, herdei tanto o apelido como as responsabilidades. Como posso ajudá-los?"


"Minhas condolências, lembro-me da dor de perder meu pai", Mara'iza se curvou gentilmente, compadecendo-se, mas também se preocupando, com a notícia. Fora garantida que "Tio Bill" a ajudaria, mas teria Abiliardo a mesma disposição? "Vim a Dragona para estudar magia na Academia Real", explicou. "Para deixar Gaz'zira, tive ajuda de Pábu'ra, filha de Jin'a Foz-té."


"Tia Gina e Prima Pavla!", Adriela se alegrou. Também ajeitou os óculos, demonstrando o mesmo costume do irmão. "Como elas estão?"


Mara ficou mais aliviada diante da reação. "Não cheguei a conhecer Jin'a Foz-té. Ela ficava na capital, é conselheira do shogun em pessoa. Mas Pábu'ra está bem, é minha amiga."


"Pavla e eu temos quase a mesma idade, crescemos juntas", Adriela comentou. "Mas, desde que Tia Gina partiu para outras terras, encontramo-nos apenas duas vezes. Sinto saudades!"


Abiliardo, contudo, parecia desconfiado. "Como chegou a Dragona? Não passou pelo porto de Câninna? Não procurou nossa casa ali?"


"Meu navio ia a Câninna. Eu tinha uma carta de Pábu'ra, para entregar a seu pai", Mara'iza explicou. "Mas ocorreu um... acidente... Caí no mar, durante a travessia. Fiquei à deriva, até chegar à Coru'nária."


"Através da Baía da Tempestade?", ele pareceu descrente.


Até então calado, o ancião na cadeira de rodas deu uma risadinha, interessado na história.


"Eu sou uma magista!", Mara'iza elevou a voz com convicção, o orgulho de suas habilidades superando sua insegurança. "Passei dias na tormenta, usei todo o meu poder para resistir àquele mar revolto!"


"E eu salvei a Malinha", Zé se intrometeu. "Tirei ela do mar, quase morta."


"A carta de Pábu'ra estava na minha bolsa, foi destruída pela água", a moça explicou. "Mas, tão logo me recuperei, continuei minha viagem. Estar aqui é meu destino!"


"Hehihi! Destino?", o velhote gargalhou. "Bah! Se fosse, não teria caído no mar, mocinha! Você chegou aqui apesar do seu destino, não por causa dele!"


Mara ergueu a sobrancelha, estranhando o ancião.


"E quanto a você?", Abiliardo Foster se voltou ao sertanejo. "Por que está aqui?"


"Eu? Eu sou Zé Calabros, cabra-macho do sertão, e tô aqui porque ela tá aqui!"


O ancião esboçou o sorriso de dentes tortos.


Abiliardo avaliou Mara. "Você disse ser uma magista. Pode demonstrar?"


Mara'iza fechou os olhos e ergueu os braços à frente. De repente, num lampejo, o pesado grimório surgiu em suas mãos. Ao abrir os olhos, exibiu o típico sorriso arrogante. "Satisfeito?"


Abiliardo se contentou. "Estou convencido de que é quem diz ser, Atsumi Mara'iza", disse. Tirou do paletó e desdobrou uma carta, que entregou à magista.


Mara, surpresa, pôs o grimório de lado e pegou a missiva, reconhecendo a caligrafia de sua amiga Pavla.


"Tio Abílius,


Envio esta carta para que saiba, com antecedência, que enviei uma amiga de minha mais alta estima ao senhor. Seu nome é Atsumi Mara'iza, uma gazzirana de linhagem sam'rai, os nobres desta terra. Por muitos motivos, mais do que posso aqui enumerar, ela deseja deixar sua família. Esta terra se tornou pequena demais para ela. É nosso dever prestar-lhe auxílio.


Mara'iza tem o espírito da aventura, ouviu o chamado do mundo. Ela é uma magista com um sonho ambicioso, e quem somos nós, Fósteres, para negar conhecimento a outrem? Peço que a acolha em Ferônia e ajude-a a ter acesso à Academia Real de Artes Mágicas.


Agradeço imensamente,

Pavla Eldora Foster


Obs.: Mando abraços à Dri e ao Vovô. Diga-lhes que sinto saudades."


Mara'iza sorriu ao ler a mensagem, mas, ao terminar, olhou perplexa para Abiliardo. "Vocês sabiam desde o princípio?"


"Nós somos os Fósteres", ele respondeu orgulhoso. "É nosso dever saber."


"Então, por que todo o questionamento?"


"Queria me certificar de sua identidade, são tempos perigosos em Dragona", ele respondeu. "Quando esta carta chegou a nossas mãos, investigamos seu paradeiro. Encontramos sua bagagem prestes a ser vendida no porto de Câninna, ninguém sabia nada a seu respeito."


"Vocês têm meus pertences?", ela se surpreendeu. "Não esperava encontrá-los novamente!"


Abiliardo, sorridente, meneou positivamente a cabeça. "Estão guardados. Gerwald mandará prepararem seus aposentos e providenciará que suas coisas sejam levadas ao seu quarto. Quanto à Academia, creio que Kari poderá conseguir uma audiência para você."


Karina, ao lado dele, sorriu gentilmente. "Será um imenso prazer!"


Da insegurança, Mara passara à alegria incontida. Em seu âmago, sentia vontade de chorar de alívio, mas era orgulhosa demais para tal. "Obrigada", curvou-se exageradamente. "Serei eternamente grata!"


"Peraí, que tem mais uma coisa", Zé ergueu a mão. "Quero ver os dragões! Os grandes! Quero saber tudo deles!"


Os Fósteres se entreolharam em silêncio. "Bem", disse Abiliardo. "Essa é uma requisição um pouco mais complicada. Veremos o que fazer."


"Ogro, digo, Carábu'ros-san", Mara chamou a atenção dele. "Creio que precisaremos do intermédio de um nobre para isso. Com a morte do pai de Bill, o título dele se perdeu."


"Isso requer mais do que um título de nobreza", informou Abiliardo. "E, de qualquer forma, o viscondado não pertencia a meu pai", completou, então voltou-se à irmã. "Dri, você não os apresentou formalmente ao Vovô?"


"Posso ter me esquecido", Adriela Foster respondeu.


Abiliardo se levantou da poltrona e posicionou-se atrás da cadeira de rodas do ancião. "Então, apresento-lhes o patriarca da família, membro de incontáveis ligas e guildas, exímio mercador e aventureiro extraordinário, Visconde Apolinário Austero Foster."


"Hehihi!", riu o velhote. "Mas todo mundo me chama de Vovô, mesmo!"


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Abiliardo precisara sair, tinha questões a resolver na cidade antes do anoitecer. Enquanto a criadagem, sob comando do albino Gerwald, preparava os quartos dos hóspedes, Adriela deixou o Vovô aos cuidados de Karina e levou Zé e Mara para conhecerem outros membros da família.


Primeiro, foram apresentados a Andreas Foster, um menino que mal começava a se tornar um rapaz. Entediado com seus estudos junto à preceptora, o garoto se empolgou com as visitas. Mara'iza aproveitou para impressioná-lo com alguns truques mágicos.


Em seguida, foram levados a Rute Lavanda Foster, esposa do falecido Abílius e mãe de Adriela, Abiliardo e Andreas. Era uma senhora elegante de meia-idade, ainda vigorosa e muito parecida com a filha. De origem fidalga, Rute ficara a contar-lhes sobre as experiências passadas entre os nobres da corte.


Então, finalmente, Gerwald apareceu para anunciar que os quartos estavam prontos.


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Adriela encaminhou as visitas aos aposentos. Zé deixou o baú da bagagem no quarto de Mara, retirando dele apenas suas coisas: embornal, alpercatas e algumas poucas mudas de roupa. Mara'iza agradeceu, então pediu privacidade.


Em seguida, Dri indicou a Calabros o quarto ao lado.


"Padim do céu!", ele exclamou assim que entrou, livrando-se dos sapatos e do paletó sem qualquer cerimônia. "Pra que tanta roupa nesse calorão da peste?"


À porta, Adriela Foster riu da espontaneidade dele. "As tradições daqui exigem um certo nível de recato", explicou. "A nobreza segue padrões, e presume-se que, quanto mais alguém se portar como nobre, mais alta é sua posição social."


"Quanta bobagem! Não sou nobre, nem quero ser!", Zé retrucou, enquanto imprudentemente removia a camisa diante da dama. "Lá na Cornália, o que importa é o quão duro se trabalha! Coronel pode ficar todo mulambento na labuta, que ninguém liga. Roupa boa, só pra festança e dia santo!"


"Passei a juventude entre a nobreza, mas não me importo com a etiqueta. Sou uma Foster, afinal!", Dri comentou, admirando o rapaz com um discreto sorriso nos lábios. Reparou no torso e braços magros, mas fortes, e nas várias cicatrizes de tiros e cortes. "Quero ser como meu avozinho, ver o mundo! Quando tive a chance, deixei a casa aos cuidados de Bill e me mudei para Câninna, onde cuido de nossos negócios mercantis."


"Não mora aqui?", ele questionou, vestindo uma camisa mais velha e surrada, com mangas curtas. Preferia deixá-la aberta, mas ainda tinha alguma noção de recato, abotoando-a até um pouco acima do peito.


"Não, mas visito frequentemente desde que papai faleceu", ela respondeu, ainda avaliando-o. Foi quando deu atenção ao par de fitas amarradas ao braço direito dele. "O que é isso?"


Zé ergueu o punho, exibindo as fitas vermelha e branca. "São promessas que fiz", retrucou.


Adriela ficou intrigada. "Agora entendo porque o Vovô gostou de você", murmurou.


Ele estranhou o comentário. "Ele gostou, foi?"


"Vovô não costuma falar muito hoje em dia, mas a vocês deu atenção", ela explanou, então preparou-se para sair. "Bem, creio que esteja cansado da viagem. Durma um pouco, eu o chamarei na hora do jantar."


"Que nada!", Zé exclamou, espreguiçando-se, depois sentou-se na cama para calçar as alpercatas. "Eu tô é cansado de ficar parado! Tem algum lugar aqui pra eu me exercitar?"


"Claro, Senhor Calabros!", Adriela se empolgou, puxando-o pela mão. "Vou mostrar-lhe os jardins! Espero que fique bem à vontade em nossa casa..."


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No quarto ao lado, Mara'iza deixou bolsa, adaga, grimório e cajado de lado. Então, ajoelhou-se ao lado de seu baú original, trazido de Gaz'zira. Dali, retirou os quimonos coloridos tradicionais de sua terra, cuidadosamente dobrados. Imediatamente, sentiu saudades de tudo que deixara para trás.


Aliviada e sorridente por reaver parte de seu passado, a jovem guardou as vestes, tanto novas como antigas, no armário. Pensou em usar um quimono durante o jantar, a fim de mostrar aos Fósteres e a Zé um pouco de sua cultura, mas acabou mudando de ideia. Deixaria para outra ocasião.


Mara ainda teria umas duas ou três horas livres. Pensou em estudar, treinar ou retocar as inscrições em seu cajado, mas desistiu no instante em que se sentou na cama. Diante da grande aventura que começava, decidiu que o melhor a fazer era descansar.


Mara'iza se despiu, ficando apenas com a tanga que usava por baixo, e deitou-se, relaxando o corpo. Rapidamente, entregou-se ao sono.


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O bosque estava em paz. O parque era movimentado, mas aquela parte da mata era afastada das vias cheias de carruagens e transeuntes. Pássaros cantando, folhas ao vento e o córrego próximo eram as únicas fontes de ruído.


Sob a folhagem rubra das copas, um homem meditava em posição de lótus. Ele vestia um elegante terno dragonino, a cartola posta ao lado, mas suas feições eram estrangeiras. Tinha a cabeça raspada, cavanhaque com barbicha e olhos puxados.


Subitamente, o som de asas perturbou sua concentração. Pelo ruído, deduzira que um pássaro mediano pousara logo atrás. "O que traz a mim?", questionou calmamente, no idioma gazzirano.


"Novidades, Daitori-sensei", uma voz sussurrou na mesma língua. Ali, onde há pouco pousara um corvo, estava agachado um vulto, trajando um uniforme negro adornado com penas. A máscara que vestia deixava-o exibir apenas seus olhos. Às costas, levava duas espadas, curtas e curvadas. "Santori viu a menina Atsumi. Ela procurou os Foz-té, conforme fomos advertidos."


Sem se levantar ou se virar para o lacaio, o homem de cavanhaque sorriu. "Muito bem, Yontori, o mestre ficará satisfeito. Algo mais?"


"Com ela, estava um homem alto, de outra terra. Parecia ser apenas um servo, não um guerreiro, mas ainda assim ele pode se revelar perigoso."


"Precisaremos descobrir mais", disse o líder. "Retorne a Santori e auxilie-o na vigília até que Nitori e Gotori os substituam. Contatarei o mestre, pedirei instruções. Esta noite, com certeza, nossas ordens mudarão. Nosso exílio nesta terra quente e bárbara se aproxima do fim."


"Sim, Daitori-sensei", disse o mascarado. Logo após, desapareceu numa nuvem de fumaça, dando lugar ao corvo, que bateu asas e retornou às alturas.


Novamente sozinho, o homem de cavanhaque fechou os olhos e murmurou: "Kurotate".


E, em resposta, uma voz cavernosa ecoou nos recessos de sua mente. "Sim, Daitori Shouta?"


"Atsumi Mara'iza está aqui", disse o homem, em voz baixa. "Conforme você previu."


Ecos distantes de uma gargalhada invadiram-lhe os pensamentos. "Finalmente! Ninguém há de escapar da Montanha de Sombras!"


"Como devemos capturá-la, mestre? Quanto sangue podemos derramar?"


"Não envolva os dragoninos em nossa contenda, Shouta", disse a voz. "Temos interesses em comum com eles. Seja sutil. Observe a garota. Aprenda seus hábitos e objetivos. E, quando encontrar o melhor momento, traga-a a mim."


"Há mais uma informação, mestre", Daitori Shouta sussurrou. "Há um estrangeiro acompanhando-a. Ainda não sabemos quem ele é, nem qual seu propósito. Devemos também poupá-lo?"


Por um momento, houve silêncio. "Dependerá dele", a voz enfim ecoou. "Caso se torne um empecilho, mate-o."


 

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