Capítulo 3 : Está decidido
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Madre Mirna logo trouxe uma bandeja com pão e queijo, frutas e uma xícara de café. Mara'iza, que esperava à mesa, agradeceu unindo as mãos e se curvando gentilmente.
Sentando-se ao lado da moça, Madre Mirna a avaliou cuidadosamente. Mara'iza tinha um aspecto meio infantil, mas não era criança, provavelmente tinha uns quinze ou dezesseis anos. "Pelos seus pertences, maneirismos e reações, presumo vir de uma aristocracia com tradições muito rígidas", a sacerdotisa comentou.
Mara'iza olhou de relance para a clériga, vendo-a encará-la com um sorriso gentil, esforçou-se em fitá-la nos olhos e devolver um breve sorriso. Desviou o assunto, contudo: "Que cidade é esta? Em que região estamos?"
Mirna respondeu: "Você está em Curva do Vento, na Cornália".
"Cornália...", a moça repetiu o nome, que soava como "Coru'nária" em seu sotaque carregado. "Essa região fica ao sul da Baía da Tempestade, não? Dragona está ao leste, correto?".
"Exatamente", confirmou a sacerdotisa.
"Preciso ir a Dragona", Mara'iza informou, provando o café. O gosto pareceu agradá-la. "Era o destino de meu navio, mas eu... caí no mar."
"Lamento, mas no momento ninguém pode viajar para o leste. Infelizmente, sua jornada terá de esperar", Madre Mirna relutou em dizer. "Você já ouviu falar dos cangaceiros?"
Mara'iza indicou não conhecer aquela palavra e tomou outro gole de café. Segurava a xícara e levava-a à boca de forma bem delicada e minuciosa, quase ritualística.
"São bandidos do sertão, sempre foram um problema nessas terras", a sacerdotisa explicou. "Mas apareceu um, chamado Severino Barriga D'Água, que se tornou o 'Rei do Cangaço' ao juntar vários bandos sob seu comando. Ele e seus cangaceiros controlam as estradas ao leste."
"Basta evitar as estradas, não?", Mara'iza interrompeu. Seu olhar tímido por um instante se transformou, revelando determinação. "Minha jornada é deveras importante para ser interrompida por simples bandidos."
"Você não entende!", a madre insistiu. "Esta é uma terra muito isolada, e para deixá-la você precisa seguir por uma trilha estreita nas montanhas. A cidade que guarda a passagem, São Vatapá do Norte, foi tomada há meses, e os cangaceiros bloqueiam o contato com o exterior. Ninguém entra ou sai da Cornália sem aprovação de Severino. Passar por lá seria loucura!"
"Isso é um absurdo! Como a situação pôde chegar a esse ponto? Vocês não têm um rei? Um exército que enfrente esses bandidos?"
Mirna meneou a cabeça negativamente. "As terras são divididas entre os coronéis, e cada um impõe a sua lei. Curva do Vento, por exemplo, é terra da Coronel Malícia".
"Esses coronéis são como nobres, então?"
"Sim, cada um tem poder de acordo com sua riqueza e terras. Existe mais de uma dezena deles, mas as famílias mais fortes eram cinco: Malícia, Meneses, Mendes, Calabros e Silva. Desses, só os Coronéis Malícia e Meneses ainda resistem".
"Calabros?", a menina se espantou, o nome soando como "Carábu'ros" em seu sotaque. "Aquele que estava aqui não tinha esse nome? Ele é um nobre, então?"
Madre Mirna nunca tinha pensado em Zé Calabros daquela maneira. "É, assim considerando, ele é sim."
"Será que algum coronel pode me ajudar?", Mara'iza perguntou. "É imperativo que eu vá a Dragona!"
"Não creio. Eles estão preocupados com o avanço dos cangaceiros. Se nem os coronéis conseguem fazer comércio com o exterior, dificilmente ajudariam alguém a atravessar o bloqueio. Seria um desperdício de recursos para eles."
A menina então pensou em outra alternativa: "E para o oeste? Não há como chegar à Adaghália? Ou a Biorca? Eu poderia procurar um porto e seguir para Dragona".
"Não, infelizmente não", Mirna lamentou. "Se seguir a costa a oeste, a estrada passa pela vila de Santo Despedido e termina numa currutela chamada Terra dos Pobres. Depois disso é só restinga até a cordilheira do 'Grande Tê', onde acaba a Cornália. Mesmo que continue além das montanhas, encontrará só as Vastidões Verdes. Levaria semanas, talvez meses, antes que visse qualquer alma viva."
Mara'iza baixou a cabeça, pensativa. "Hmmmm...", murmurou, e então ergueu-se determinando: "Então não tem jeito! Com bandidos ou não, seguirei para o leste!".
A conclusão da menina espantou Mirna. "Você tem noção do perigo que corre? Espere um pouco! Talvez em alguns dias apareça uma oportunidade, não há necessidade de tamanha pressa!"
"Sinto muito, sacerdotisa, mas esses tais 'cangaceiros' não interromperão minha viagem!", afirmou com punho cerrado e um ligeiro, mas confiante, sorriso.
Diante de tanta teimosia, Mirna levou a mão ao rosto em descrença. "Está bem! Está bem!", desistiu, confessando com certa relutância: "Há uma pessoa que talvez possa ajudá-la".
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"Espere pelo entardecer, por favor!", insistiu Mirna, "Assim poderei acompanhá-la. Pela manhã tenho que tratar dos fiéis que vêm à capela".
"Não se preocupe, sacerdotisa!", Mara'iza respondeu sorrindo, já muito mais à vontade. Suas feições se tornavam quase angelicais quando ela sorria tão satisfeita e despreocupada. Além do vestido e do colete de renda, recebera também um par de botas e um chapéu de palha para protegê-la do sol. Levava consigo a sacola e o livro a tiracolo, cada qual pendendo para um lado do corpo. Na cintura, tinha amarrada uma faixa, à qual prendera sua adaga, devidamente embainhada.
"Você está sendo teimosa e imprudente, menina! Não há necessidade de pressa!"
"Você não me conhece, sacerdotisa!", Mara'iza riu baixinho. "Pressa e teimosia são de minha natureza, só perdem para a curiosidade!"
Mirna não conseguiu conter o sorriso diante de uma declaração tão espontânea.
Mara'iza se aproximou da madre, e as mãos da moça envolveram a da clériga. "Agradeço por tudo que fez por mim. Devo-te minha vida!", a menina disse, curvando-se em reverência. Quando se afastou de Mirna, deixou sobre a palma da sacerdotisa oito moedas de ouro. "Para você, por sua generosidade... e para aquele ogro também. Agradeça-o por mim."
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Mara'iza partira sorridente e confiante, mas Mirna não estava tão segura, nem podia deixar de se preocupar. Cornália era uma terra erma, seca e violenta demais para uma menina tão frágil e alheia aos costumes locais. A madre sentia o dever de ajudá-la de alguma forma, mas como única clériga da capela não poderia abandonar suas obrigações.
Antes de seguir ao salão do altar, onde os fiéis e necessitados certamente já a aguardavam em oração, visitou um dos quartos. "Senhor Fatrício, como está se sentindo?", perguntou ao entrar.
Fatrício exercitava o braço e testava os movimentos dos dedos. Até o dia anterior, tais tarefas tão simples seriam impossíveis. "Divino Pai te abençoe, madre! Estou me sentindo tão bem!"
Mirna sorriu. "Você está liberado, então, mas evite forçar o braço por uma semana."
"Fico imensamente agradecido, Madre! Como posso te pagar? Não tenho muito dinheiro, mas vontade de recompensá-la não falta!"
Diante daquela oferta, Mirna teve uma ideia. "Preciso de um favor, Senhor Fatrício", sorriu a madre. "Quando você partir, procure um rapaz para mim e diga que preciso vê-lo com muita urgência. Na certa, ele está lá pelo mercado, basta perguntar para encontrá-lo. O nome dele é Zé Calabros."
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"É aquela ali?", o sujeito mal-encarado, barbado e de cara marcada por cicatrizes questionou ao ver uma moça deixar a casa de Padim.
"Ah, Cagado, só pode ser!", respondeu Podreira, "Tem tudo que aquele bêbado de ontem descreveu: forasteira, baixinha, branquela, cabelo preto, sacola de couro e aquele livrão grosso debaixo do braço. Se não for, é a irmã gêmea! Avisa o bando que a gente encontrou a moça e espera no lugar que te falei!".
Cagado assentiu e partiu, puxando um pito de detrás da orelha e acendendo-o logo antes de desaparecer no meio do movimento da rua.
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Ao deixar a capela, Mara'iza foi banhada pela forte luz do sol. O vento sul a surpreendeu, fazendo-a parar para segurar o chapéu e o vestido, que se erguia e revelava mais do que gostaria de suas pernas. Olhou ao redor, procurando olhares de reprovação, mas não notou ninguém a repará-la. De fato, as mulheres ali se vestiam casualmente, algumas com pernas, ombros e braços expostos de uma maneira inconcebível em sua terra natal.
Mara'iza respirou aliviada, percebendo que se preocupava à toa. Sua presença não chamava atenção, e com isso veio a realização de que estava verdadeiramente sozinha no mundo, o que a fez murmurar em seu idioma: "Todos devem achar que estou morta...".
E aquilo trouxe um profundo alívio e a fez sorrir como há muito não fazia. "Devem achar que estou morta!", repetiu com intensa e incontida alegria. Estava finalmente livre!
A jovem caminhou a passos lentos, sorridente. Seus olhos vasculhavam curiosamente os arredores, atentos aos detalhes dos prédios, das roupas e das atividades locais. As pessoas dali eram simples, sem a sofisticação de sua Gaz'zira, nem ritos rígidos em seus afazeres diários. E ninguém parecia se importar com uma forasteira em seu meio.
Indo na direção indicada pela sacerdotisa, Mara'iza chegou à praça, onde o movimento era ainda mais intenso. A moça se maravilhou ao avistar o forte flutuante da família Malícia, admirando-o por alguns minutos, mas logo recobrou a razão e seguiu a avenida do comércio rumo à praia.
Distraída por tantos detalhes daquela terra tão exótica, Mara'iza não percebeu o bigodudo de poncho e chapéu de palha a seguindo.
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Zé Calabros subia correndo a ladeira da avenida, carregando duas sacas de grãos sobre os ombros. Não havia necessidade de correr, nem de levar tanto peso, mas assim eram seus dias: um desafio constante de quebrar seus limites e se fortalecer. Por onde passava, punha seus talentos à disposição dos comerciantes e cidadãos, assim recebendo em troca comida, estadia e um pouco de dinheiro para sobrevivência.
Histórias sobre os feitos de Zé Calabros já se espalhavam pela Cornália: diziam que ele corria tão rápido quanto um cavalo, que vencera doze jagunços numa briga ou que derrubou uma árvore com golpes de seus punhos, entre outras. Algumas dessas histórias eram exageradas, outras nem tanto.
Ali na avenida, as pessoas davam passagem ao rapaz, admiradas por sua habilidade. Na pressa, Zé não percebeu a pequena Mara'iza se desviar dele. Distraída, a moça nem notou a quem dera passagem. Cruzaram-se na ladeira sem se reconhecerem, e seguiram seus caminhos como se nada tivesse acontecido.
Zé só parou ao chegar à venda do Seu Bonfim, bem no meio da praça. Pôs as sacas ali e se pôs a descansar, alongando costas e ombros. Seu Bonfim já vinha com os dois centos de pagamento, quando surgiu da multidão um camponês ofegante.
"Você que é Zé Calabros?”, perguntou o recém-chegado, recuperando o fôlego.
"Sou eu mesmo, à sua serventia! E você, homem, quem é, e como posso te ajudar?"
"Meu nome é Fatrício, muito prazer, mas não sou eu quem precisa de ajuda, não. Trago um recado de Madre Mirna lá da capela. Ela quer lhe ver ligeiro!".
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Podreira sorriu satisfeito ao ver a moça estrangeira chegar à praia. A manhã corria muito melhor do que o esperado: primeiro ela deixara sozinha a segurança da capela, agora se afastava das ruas movimentadas. Talvez pudesse atacá-la ali mesmo na praia, sem a ajuda dos outros.
Aguardava apenas a chance certa. Se a oportunidade surgisse, agiria logo de uma vez, arrancando a sacola da moça e fugindo de volta à multidão. Senão, prosseguiria com o plano conforme o combinado.
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"Você não pode me pedir uma coisa dessas!", Zé Calabros retrucou.
Madre Mirna o fitou placidamente, em silêncio.
"Por que vou ajudar aquela moça? Já salvei a vida dela uma vez, já tá mais do que bom!"
Mirna apontou para o braço direito de Calabros. "Ela te ofendeu, isso eu entendo. Mas seu orgulho é mais importante do que isso?"
Zé olhou na direção indicada e viu as duas fitas envolvendo seu braço. Ergueu o punho direito, tocando gentilmente as fitas com a mão esquerda, e fechou os olhos.
"Essas fitas não estão aí apenas de enfeite, estão?", Mirna questionou calmamente.
Zé Calabros nada disse.
"São promessas feitas a vidas que você não pôde salvar."
Ele permaneceu calado e baixou a cabeça. Aquilo era resposta suficiente.
"Só um homem fraco é governado pelo orgulho, José. Você é orgulhoso, mas fraco com certeza não é! Mara'iza é uma boa menina e precisa de ajuda. Eu sinto que há mais em comum entre vocês do que imagina. Por favor, prometa-me que vai levá-la em segurança a Dragona."
Ele ergueu a face e deu o braço direito a ela. "Amarre mais uma pra mim, Madre."
Mirna afastou o braço dele e sorriu. "Não é preciso, sua palavra é mais do que o bastante. Não há ninguém neste mundo em que eu confie mais do que você, José Calabros."
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"Como assim, você não pode me ajudar?", Mara'iza questionou indignada. Falava alto devido ao ruído do vento e das fortes ondas. "Pagarei o que você desejar! Minha ida a Dragona é muito importante!"
Diante dela, ali na ponta seca do píer, estava o Capitão Jacinto. "Não é questão de dinheiro, moça!", ele disse, apontando para o mar, mais precisamente para o horizonte negro ao norte. "Essa é a Baía da Tempestade! Mesmo nos melhores dias, ninguém ousa se afastar demais da costa, e os dias de trégua estão no fim. A tormenta tá crescendo de novo, e em poucos dias nenhum barco vai poder navegar."
Mara'iza, segurando o chapéu para que não voasse, fitou aquela negritude que trazia à tona memórias de desespero. "Eu sei o quanto essa tempestade pode ser terrível", murmurou, revivendo os dias que passara à deriva.
"Pois então! Ninguém sabe nem quando a borrasca vai chegar à praia, muito menos quantos dias vão passar antes que ela volte a enfraquecer. É sempre assim: a tempestade vai e vem, mas nunca desaparece. O melhor momento pra navegar é quando ela recede, e mesmo assim é arriscado. Agora, então, nem Anaren pode ajudar!"
Mara'iza se desanimou diante da má notícia. Talvez o destino não quisesse que ela seguisse viagem. Suspirou profundamente e curvou-se respeitosamente. "Agradeço pela atenção."
"Vá com Anaren, minha filha! Se ainda estiver na cidade quando a tempestade se acalmar, terei satisfação em te ajudar!"
Capitão Jacinto seguiu para a outra ponta do píer, para preparar o Caixeiro-Viajante. Levaria o barco para águas mais fundas, onde ficaria ancorado, a fim de evitar que fosse atirado contra o píer ou as rochas durante a tempestade vindoura.
Mara'iza decidiu voltar ao centro da cidade, mas não desistiria tão cedo de seu objetivo. Haveria de encontrar uma maneira de continuar sua peregrinação.
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Fingindo interesse nas vendas dos pescadores, Podreira se aproximara o quanto pôde da moça estrangeira e do velho pescador Jacinto. Tinha desistido de atacá-la ali, porque a maioria dos pescadores, preocupados com a intensificação da tormenta, resolvera ficar na praia naquele dia. Além disso, da forma como a menina se preparara, a alça do livro tinha ficado sobre a da sacola, o que impediria que ele simplesmente tentasse surrupiá-la num movimento rápido.
A proximidade, contudo, permitiu ao cangaceiro ouvir parte da conversa. Quando a menina começou a retornar, Podreira se aproximou cautelosamente, tirando o chapéu em falso respeito e se apresentando a ela: "Com sua licença, senhorita, perdoe-me a impertinência, mas não pude deixar de ouvir sua conversa. Pelo que entendi, precisa ir a Dragona?".
A moça se virou a ele, fitando-o desconfiada. Fechou a cara, desconfortável, e sua postura se tornou mais altiva: "E por que isso interessaria a você, plebeu?".
Diante da arrogância, Podreira sentiu vontade de sentar a mão na cara dela ali mesmo. Conteve-se, porém: "É que conheço um cabra que pode te levar", disse, então arrematando: "Mas o caminho não é nada fácil, e nem vai sair barato. Não é opção pra qualquer um!".
A moça continuou a analisá-lo. "Disseram-me que a passagem está bloqueada por bandidos, e que o mar não será navegável por muitos dias", informou, então questionando num tom provocador: "E por acaso esse homem pode me ajudar como? Voando?".
Podreira fingiu um riso breve. "Ah, não, mas ele conhece uma trilha pelas montanhas! Não é caminho pra cavalo nem jumento, e tem que escalar um pouco, mas dá de contornar São Vatapá do Norte e chegar à estrada!"
A menina pensou por alguns momentos, obviamente desconfiada. "Como se chama, plebeu?"
"Eu sou Jacozino Catadouro, à sua serventia", Podreira respondeu com o nome de nascença, "E à senhorita, como devo me dirigir?".
"A honra de um nome só se dá a quem se prova digno! Leve-me até esse seu amigo, Jacozino", ela disse em tom imperativo, e ameaçando: "Mas se não estiver falando a verdade, vai se arrepender. Muito!".
Menina insuportável, Podreira pensou. Mas ainda assim sorriu, imaginando que logo ensinaria uma lição de humildade àquela presunçosa. Isso, se ele decidisse deixá-la viva depois de tantos desaforos. "Sim, senhorita. Vem comigo, faz favor!"
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Zé Calabros desceu a ladeira às pressas. "Aquela menina é uma peste! Um estorvo!", reclamava, desviando-se agilmente das pessoas, barracas e carroças no caminho. Ele podia ter concordado com Madre Mirna, mas nada o forçava a gostar da garota.
Pouco antes de chegar à praia, Zé viu Mara'iza vir no sentido contrário, acompanhada de um homem estranho. "Arre égua, que diabos de cabra é aquele?", resmungou. Interrompendo subitamente a corrida, tropeçou, caiu e rolou ladeira abaixo por uns metros antes de conseguir parar.
Levantou-se, ferido apenas no orgulho. "É um fardo mesmo! Um atravanco!", continuou a reclamar. Resolveu não ir de encontro a ela, preferindo antes avaliar a situação.
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Pouco antes de chegarem à praça, Mara'iza e "Jacozino" deixaram a avenida e adentraram as ruas secundárias. Caminharam por cerca de dez minutos para o leste, se afastando cada vez mais do centro, onde os casarões davam lugar a casas menores. Seguindo ainda mais adiante, deixaram a parte murada da cidade, onde as ruas ladrilhadas se tornavam vielas pouco movimentadas de chão batido entre casebres sem eira nem beira.
"Demando saber que lugar é este e aonde está me levando!", exigiu Mara'iza, que mantivera seu pesado livro apertado contra o peito por todo o trajeto.
"Calma, moça, que tamos chegando! Aqui é periferia, bem nos limites da cidade. A gente daqui é pobre, mas é gente honesta."
A desconfiança de Mara'iza crescia cada vez mais, mas subitamente a curiosidade da menina foi despertada quando viu ali adiante, no meio de um terreno baldio, a carcaça de uma estranha máquina de metal enferrujado. Dando as costas a "Jacozino" e se aproximando do estranho objeto, que parecia um misto de carroça e canhão, questionou: "O que é isso?".
"Sucata de uma máquina de guerra", respondeu seu guia. "Falam que isso aí é coisa matrixiana. Aqui e acolá você ainda encontra restos como esses. Faz quase uma década, o Coronel Tibúrcio Mendes quase conquistou a Cornália com coisas como essas."
A memória de Mara'iza era afiada, e logo se recordou que o sobrenome Mendes era de uma das cinco principais famílias de coronéis citadas por Madre Mirna. "O que aconteceu com esse Tibúrcio Mendes?", perguntou.
"Bateu as botas. Vieram uns cabras estrangeiros, que libertaram os outros coronéis e derrotaram o Coronel Tibúrcio. Que o diabo o carregue!"
Mara'iza avaliava os restos da máquina de perto, circundando a sucata e a examinando cuidadosamente. Boa parte das peças já tinha sido retirada, e o que restara estava inutilizado, mas era possível notar que se tratava de um mecanismo muito complexo. "Hmm...", murmurou, "Interessante!".
Jacozino, ou melhor, Podreira sorriu. A menina estava com a guarda baixa, aquele era o momento! Ele avançou sobre ela, agarrando-a pelas costas, imobilizando seus braços e tapando sua boca. O chapéu da moça caiu no chão com o súbito ataque.
Mara'iza, surpreendida, tentou se debater. Dois homens que ela vira no caminho surgiram no canto da visão. Um sacou um facão, o outro uma garrucha. Um terceiro surgiu de outro lado, sabre numa mão e garrucha em outra. Os três se puseram a escoltar Podreira, que levava a menina à força através do terreno baldio.
"Então sou plebeu, sua ordinária?", Podreira provocou, "Tava se achando o máximo! Era o 'ó' do borogodó, né? Agora vou te ensinar boas maneiras!".
Do matagal de outro lado do terreno, surgiram mais dois homens. O barbado e cheio de cicatrizes no rosto, dava ordens ao bando. "Ali, Podreira", ele avisou, apontando para umas árvores próximas. "Tem espaço e ninguém vai ver nada, fiz questão de verificar!"
"Ajuda aqui, Cagado, que essa peste tá insistente em querer fugir!", Podreira respondeu, lutando para conter a menina.
Mara'iza conseguiu se debater o suficiente para livrar a boca e emitir um grito, mas logo foi contida por Cagado. Entre as árvores havia um espaço que a folhagem ajudava a esconder. O chão era de terra, com pouca grama devido às copas frondosas.
Num movimento rápido, Podreira removeu o livro de Mara'iza à força, desvencilhando-o dela e atirando-o ao chão. A menina tentou segurar o tomo, mas foi impedida por Cagado, que a manteve imobilizada. Em seguida, entregando a moça para o parceiro segurar, Podreira arrancou dela a sacola. "Vamos ver se é verdade...", disse, abrindo a sacola para avaliar o conteúdo.
"Eu vou acabar com vocês", Mara'iza ameaçou, se debatendo com um olhar raivoso.
Os cangaceiros riram. "Ai, Padim, que moça brava!", um caçoou.
"Até que ela é bonitinha. Será que dá pra domar essa potranca?", outro provocava, passando a mão no rosto dela.
Subitamente, a moça parou de se debater, contendo os ânimos. Fitando Podreira com estranha frieza e sorriso sarcástico, provocou: "Seis homens para uma moça. Que bandidos sem brio! Digam-me uma coisa... Vocês capam seus colhões, ou eles caem naturalmente?".
A reação dela deixou todos estupefatos. Após um momento de silêncio, Podreira soltou uma risada desconfortável. "Olha só! A princesa não tem medo do perigo! Mas aqui não tem ninguém pra te proteger não! Você não vai querer saber como isso vai terminar!"
"Eu sei como termina!", ela respondeu sem medo, "Vocês se recolherão à própria insignificância, como os covardes que são".
Os bandidos riram. "Dá uma lição nela!", Podreira mandou.
Cagado jogou a menina violentamente contra o chão e chutou-a caída. Apesar das bravatas, ela era frágil, recolhendo-se em dor e gemidos.
"Se me der um beijinho, te trato melhor, princesa!", Cagado provocou, chutando-a uma segunda vez.
"Dá um beijinho no meu punho, fela-d'égua!", surgiu Zé Calabros, a cinco passos do bandido mais próximo, de peito aberto e segurando na mão esquerda o chapéu de Mara'iza.
Incomodado, Podreira ameaçou: "Não te mete, cabra, que já tô aperreado! Avexe-se daqui, ou te passamos fogo nas ventas, peste!". Os dois bandidos armados com garruchas as apontaram para o recém-chegado.
Zé Calabros deu o primeiro passo, "Larga a moça e as coisas dela", ameaçou, completando ao concluir o segundo passo, "senão eu sento a mão na fuça de vocês".
"Esse aí não é o Zé Calabros?", perguntou o mais ao fundo, próximo a Cagado e Podreira.
Zé deu o terceiro passo.
"Atira no infeliz, suas antas!", Cagado mandou.
O bandido à frente puxou o gatilho, mas Calabros se arremeteu contra ele, agarrando seu braço com a mão direita e torcendo-o para fora. O disparo ocorreu, causando forte estampido, mas a bala se perdeu para o alto. Antes que o bandido reagisse, o cotovelo esquerdo de Zé já atingira seu queixo, esmagando sua mandíbula. O cangaceiro tombou de imediato.
O segundo bandido, empunhando sabre e garrucha, disparou logo em seguida. Sua mira, contudo, se perdeu quando o rosto dele foi atingido pela arma do primeiro, arremessada por Zé numa fração de segundo.
O terceiro bandido, este portando um facão, avançou sobre Calabros, que se esquivou da lâmina sem dificuldades. O segundo, sabre em mão, largou a garrucha e investiu contra Zé. Calabros agarrou o terceiro pelo colarinho e o puxou, interpondo-o ao golpe do sabre. A espada cortou fundo as costas do bandido, que urrou de dor.
"Arre égua!", Podreira exclamou, largando a sacola de Mara'iza e sacando rapidamente duas garruchas de dentro de seu poncho. Fez dois disparos, mas Zé desta vez empurrou o terceiro bandido na direção de Podreira, fazendo-o levar as balas. O pobre bandido, já cortado e baleado, caiu inconsciente.
Zé se concentrou em desviar das investidas do sabre. Um golpe horizontal em arco forçou-o a recuar, seguido por um ataque vertical que o fez se esquivar para o lado. Antes que o cangaceiro erguesse a arma para uma terceira tentativa, Calabros fechou o punho e esmurrou a lâmina com toda a força. Diante do tremendo impacto, o sabre se partiu em dois.
"Fí-sem-mãe!", Podreira exclamou surpreso. "Mata esse cabra da moléstia", ordenou, empurrando o quarto bandido para a briga.
"Mas esse aí é o Zé Calabros!", implorou o capanga, sacando dois facões, hesitando.
"Eu tô pouco me lixando pra quem ele é!", insistiu Podreira, largando uma garrucha e se concentrando em recarregar a outra.
Nesse meio tempo, o bandido do sabre quebrado levou um golpe certeiro de Zé na cara. Voou uns dois metros antes de bater contra uma árvore e cair inconsciente na terra.
Zé Calabros fitou os três que sobravam, que tremeram igual vara verde.
Cagado sacou uma faca e puxou Mara'iza do chão. Pôs a lâmina no pescoço dela, ameaçando Zé: "Se vier pra cima, eu degolo a moça!".
Calabros não avançou, mas também não relaxou o corpo. Ainda estava pronto para distribuir socos e pontapés.
Podreira terminou de recarregar a garrucha e a apontou para Calabros. Por um instante sorriu, se achando vitorioso.
Mara'iza, com a faca no pescoço, retrucou a Zé: "Ei, ogro! Você roubou minha cena!"
"Do que você está falando, pirralha?", Calabros questionou.
Ela sorriu confiante. Seu estratagema funcionara, afinal. Quando fora puxada do chão, já tinha recuperado seu livro. "Tremam, mortais, e contemplem!"
Instantaneamente, a menina desapareceu das mãos de Cagado e surgiu atrás dos cangaceiros. Cagado e Podreira nem tiveram tempo de localizá-la antes que ela erguesse a mão na direção deles, provocando uma onda de choque na direção dos dois. Atingidos em cheio, ambos foram arremessados ao chão. Até Zé Calabros ficou boquiaberto e de olhos arregalados.
Mesmo ferido, Podreira virou a garrucha para Mara'iza e disparou.
Com um movimento da mão e olhar confiante, Mara'iza criou diante dela uma fina barreira luzente, que bloqueou a bala, ricocheteando-a ao chão. "Aqui estão os seus beijinhos, canalhas!", rugiu a moça, e duas lanças cintilantes saltaram de seus dedos. Os disparos viajaram em arcos independentes pelo ar, provocando explosões luminosas ao atingirem Cagado e Podreira. O impacto abrasivo das explosões levou os dois a nocaute.
O bandido que restara ainda estava de pé, mas tremia nervosamente, paralisado de medo. Empunhava seus facões, mas não demonstrava qualquer ímpeto de ataque.
"E aí, destrambelhado? Vai encarar?", Zé ameaçou de um lado, mostrando o punho.
"Recolha-se à sua insignificância!", provocou Mara'iza do outro, apontando a mão aberta.
O bandido olhou ao redor, perscrutando seus cinco companheiros, todos inconscientes, talvez mortos. Largou os facões e saiu numa disparada frenética, pedindo perdão.
Mara'iza e Zé Calabros se entreolharam. Ela sorriu orgulhosa e vitoriosamente. Já ele estava espantado. "Mas que diabos foi aquilo tudo?", Zé questionou, "Você tem pacto com o diabo, menina?".
"Não tenho pacto com coisa nenhuma, seu energúmeno ignorante! Eu sou uma magista, uma estudante dos segredos arcanos! Mas deve ser pedir demais que um ogro como você saiba o que é isso!"
"E você é um estorvo, sua mala!", Zé Calabros se aproximou, colocando o chapéu de palha na cabeça dela. Ele lutara o tempo todo sem usar a mão esquerda para não danificá-lo.
"É Mara! Mara'iza!", ela o corrigiu, afastando-se dele para pegar sua sacola, abandonada ali no chão pelos bandidos.
"Não, é mala mesmo! Uma mala sem alça, e bem pesada! Um atravanco na minha vida, que não cansa de me apoquentar! E vam'bora, que aqui na Cornália você não fica mesmo! Vou te levar pra terra de Dragona!"
A menina fez uma cara de irritação e cruzou os braços. "Eu não vou a lugar algum com você!"
"Ah, mas vai sim! Promessa é promessa, não volto atrás!", Zé Calabros insistiu, batendo o punho fechado sobre a palma aberta da outra mão. "E tá decidido!"
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Mané do Cangaço girou o tambor do revólver, mas antes que este parasse naturalmente, os sons da mata chamaram a atenção do cangaceiro. Num movimento quase instantâneo, Mané interrompeu o tambor, armou o revólver e o apontou para a folhagem. Nem um segundo depois, um homem surgiu daquela direção. Mané só não atirou, atingindo certeiramente a testa do sujeito, porque o reconheceu como um dos quatro que mandara acompanhar Cagado e Podreira. O recém-chegado estava ofegante e assustado, parando para recuperar o ar assim que adentrou a clareira.
"Que cê tá fazendo aqui? Cadê os outros?", questionou Mané.
"Mané!", o homem falava ofegante, "O bando foi todo derrotado! Só eu escapei pra trazer a notícia!".
"Cumequié?", Mané se aproximou. "Como que isso foi acontecer? Foi a guarda da cidade? Fala, diacho!"
"Não, tudo correu direitinho, que nem planejamos. Mas daí apareceu o Zé Calabros, e a menina também não era indefesa!", respondeu o homem. "Ela sabia usar feitiço, chefe!"
A revelação não pareceu assustar Mané, mas certamente o deixou furioso. "Arre égua!"
"Que a gente vai fazer, Mané?"
"Ora! A gente vai seguir a lei do cangaço, seu traste! Companheiro caído é companheiro vingado! Cê vai lá pra Bota do Judas, avisar Severino do ocorrido. Já eu vou pegar o nosso bando todo e caçar esses dois pestes, pra modo de ensinar uma lição!"
"Mas chefe! É o Zé Calabros, e a moça também não é gente comum!"
"Pois já lidei com o tipo dela antes, traste!", disse Mané, abrindo o revólver, contando as balas, girando o tambor e fechando a arma de novo. Em seguida, apontou numa direção, fazendo mira: "E não tem homem nesse mundo que aguenta levar um balaço na testa!"
A seguir: Impossível é somente uma palavra
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